terça-feira, 16 de março de 2010

O direito penal da "sua mãe"!

Calma, pessoal. Não é uma ofensa à suas queridas progenitoras. Queria falar sobre um assunto sério, ainda que bastante lúdico. Falo do chamado por mim e meus antigos colegas de faculdade do direito do "e se fosse com sua mãe?". Essa expressão fui cunhada, se não me engano, por Aury Lopes Jr., e demonstra um fenômeno bastante comum no direito, e que ganha uma força descomunal no direito penal.

No direito, alguns conceitos são quase intuitivos. O direito à propriedade é uma coisa incontestável nos nossos dias atuais. Quem não fica puto da vida quando é roubado, tem seu direito de propriedade violado por um marginal qualquer? Então, não é preciso ser nenhum juiz ou promotor para compreender esse direito à propriedade. No entanto, outros direitos tão importantes quanto são mais complicados para serem assimilados pelo povo, como por exemplo a presunção de inocência. Incapazes de ver a necessidade de certos direitos, especialmente os direitos que são mais comumente aplicados aos criminosos, algumas pessoas acabam negando a validade desses direitos. E mais: acabam se virando contra as pessoas que defendam estes direitos.

Esta nova forma de "ver" o direito é bastante difundida entre apresentadores de programas sensacionalistas. Para eles, os atos cometidos por um criminoso são tão 'hediondos", que qualquer um que cometa-os perde totalmente seus direitos como cidadão (direito penal do inimigo). "Um criminoso desses é um monstro, não uma pessoa". E qualquer pessoa que defensa um desses é porque nunca sentiu na pele a violência, nunca foi vítima de crime. É aí que surge o direito do "e se fosse sua mãe".

O "e se fosse sua mãe" pretende conectar psicologicamente o indivíduo à vítima, fazendo com que ele pense em todo o sofrimento em que ela passou por causa de um "monstro". Eles partem do pressuposto de que se algum dos entes queridos dos defensores dos direitos humanos fossem vítima dos bandidos, eles mudaríam de opinião. Eles acreditam que estes defensores nunca sentiram na pele a violência, e que por isso acham que é bonito 'defender bandidos'.

Com isso, duas coisas ficam claras deste ponto de vista: a total parcialidade deste ponto de vista e sua preocupação com a pura e simples vingança.

Qualquer pessoa vítima de um crime ou uma injustiça tem todo o direito de reclamar por justiça, vingança, reparação. Nestas situações, o mais importante pra o indivíduo não são os direitos humanos de quem quer que seja, e sim a dor e o sofrimento que ele passa. Isso é normal. Porém, se a vingança fosse liberada, veríamos uma onda de caos e violência generalizada. Você pisou no pé de seu vizinho? Prepare-se, pois ele pode querer se vingar arrancando o seu pé! Como a dor e a vingança seriam assuntos intimamente pessoais, qualquer um poderia fazer o que bem entendesse, de acordo com o que achasse mais justo pra vingar seu sofrimento. Um filho de uma vítima de acidente de carro poderia muito bem querer matar toda a família do responsável pelo acidente. Na verdade, houve um tempo em que era exatamente isso o que acontecia. Ainda hoje temos um exemplo disso na nossa sociedade, com a "lavagem de honra" que vez ou outra ouvimos envolver famílias ciganas.

Só ressaltando que qualquer vítima de crime tem o direito de pedir ressarcimento dos prejuízos causados pelo criminoso, isso lá no direito civil, ok? Antes que venham aqueles argumentos tipo: "o cara me roubou, e eu vou ficar no prejuízo, é?"...

Felizmente, este tempo acabou. Para evitar conflitos deste tipo, o Estado moderno puxa pra si a responsabilidade de julgar e condenar os criminosos, na tentativa de evitar que vinganças e mais vinganças colocassem toda a sociedade em risco. Pra isso, ele precisou padronizar os castigos e extirpar o caráter de vingança dos mesmos, ao menos na teoria. Além disso, o Estao passou a ter que ser cada vez mais imparcial em seus julgamentos. Isto porque uma pena exagerada é tão injusta como uma pena branda demais. O que nos leva ao segundo ponto.

Ao aproximar o induvíduo ao sofrimento da vítima, o direito penal do "se fosse sua mãe" acaba por tirar toda imparcialidade que essa pessoa teria. Que vítima poderia ser parcial se pudesse julgar seu agressor? Exigir isso de alguém é inumano. Mas o juiz, que (teoricamente) deve lutar pela justiça acima de tudo, tem o dever de ser imparcial sempre. Um juiz envolvido com o conflito jamais seria parcial, e não pode julgar direito. Pelo mesmo motivo um médico não pode operar pessoas de sua própria família, ele está extremamente envolvido emocionalmente com o paciente, a possibilidade de cometer um erro é extremamente grande. Do mesmo modo, um juiz envolvido com o sofrimento da vítima, inconscientemente, daria uma sentença injusta, uma vez que seria bem mais exagerada do que deveria ser.

Portanto, pessoal, muito cuidado com o direito do "e se fosse sua mãe". As leis são maleáveis, os fatos distorcíveis e as pessoas cometem erros.... um dia, nós poderemos precisar de alguns direitos humanos e não acharemos.

2 comentários:

Unknown disse...

Grande mestre Rafael, venho a este espaço tentar contribuir com seu excelente texto que remonta a nossa sociedade ávida por inquisição.

Diante da curiosa frase "e se fosse com a sua mãe?", isto é, se a sua maãe fosse vítima de crime, tomo a liberdade de perguntar "e se fosse a sua mãe?", todavia faço esta pergunta sobre outro ponto de vista, qua lseja: e se fosse a sua mãe que cometesse um crime? Já se perguntaram? Se diria: Calma aí todos vocês, ela tem direito de se explicar, ou então: Ela não estava no se unormal, alguma coisa aconteceu ela jamais faria uma coisa dessas...

Costumo dizer que sempre partimos do ponto de vista em que nós sofremos a agressão, que somos a vítima, sendo que jamais nos colocamos do ponto de vista de que podemos ser o agressor ou os nossos entes mais queridos o podem.

Oxalá que possámos esquecer de que somos o umbigo do universo e termos uma visão mais pacimônica.

Que os depojos egoísticos fiquem às margens do caminho que todo o homem sensato deve trilhar...

DRzinho Gleison disse...

Mestres Rafael e Jean,

douta teoria aclamada por parcela (maioria) da sociedade brasileira, inflada pela mídia ibopilística pátria certamente não gostou muito do que leu por aqui.

Eu só imploro que antes de incendiarem os corpos dos meus inexoráveis amigos acima (portadores da mutação brasileira do raríssimo vírus italiano chamado Garantismo) e os arremessarem do topo do Aconcagua, olhem para si mesmos e indaguem: "...e se fosse sua mãe...?"

Pois é... e se sua mãe que fosse lesionada, roubada, estuprada, assasinada, será que você estaria se importando com bobagem de devido processo legal, de contraditório, de ampla defesa, ou até mesmo de "utilização moderada dos meios necessários"..??

Eu não sei vocês, mas éu só penso em uma coisa: vingança. Ou será que estou equivocado?

Pois é, agora imaginem o inverso, "...e se fosse seu pai que lesionasse, roubasse, estuprasse, assasinasse...?

Ôpa...! pera aê...pera aê...pera aê! Se seu pai fez isso deve ter algum motivo né..?? Não vamos colocar ele na frente da televisão antes de ouví-lo..! Não é porque seu pai roubou que a cadeia (com 18 pessoas na cela onde deveria caber só 6 + com traficantes, sequestradores, latrocidas e pedófilos)será a solução para o problema dele. Os políticos robam e não vão para cadeia, por que seu pai deveria ir né?

Eu sou, sim, defesor do "... e se fosse sua mãe...", contudo, em respeito à CF/88 (isonomia), entendo que deveriamos aplicar, concomitantemente o "... e se fosse seu pai...", pois só assim você iria parar nas mãos do conselho tutelar (mãe assinada e pai assasino) e ganharia uma nova família... imparcial, espero.!